sábado, 30 de março de 2013
Quatro poemas inéditos
Mais Valia
Saio primeiro,
Acampamento.
Sirene do
silêncio.
Canteiro de
temperança e fogo
até enternecer
um segundo de palavra
que o tempo não oprima.
instante paralelo I
Quando estás
longe, viras palavra.
Escrevo contigo
e materializas
nossa memória.
E já me puxas para
o poema.
Câmara de
imaginações
aceleradas,
flutuações de
magia.
Chorar de palavra,
na medula.
E escrevemo-nos,
dentro do poema.
Os sentidos se
sinestesiam -
línguas novas
juntas semânticas -
os sonhos se
embebedam.
Uma palavra te
acorda:
“Chegamos!”.
Pagas o táxi,
sorrindo,
eu sentado no
batente, à espera.
Variações ao teu corpo
I
Leva logo teus pés,
pro mar serenar.
II
Água de fogo.
III
Nunca te vi como a
minha mãe,
nem como as minhas
filhas.
IV
Corpo de jogo.
V
Foi isso?
Um raio ficou
enganchado
nos teus cílios?
VI
- Por que tá
olhando assim?
- Nos últimos
dias, sei que vai sair luz –
a qualquer
instante, alguma coisa lunar
vai se irradiar de
ti. Não passa de hoje.
VII
Teu corpo delira;
meu desejo vela.
VIII
Tens uma missão.
IX
Teu corpo é real.
X
O império do
agora.
XI
Hoje não morrerei.
instante paralelo IV
Eu já na terceira
caipirinha,
e nada da Palavra.
O boteco, quase
vazio,
reagia ao frio
fora de época
cantando sem
instrumentos.
Aí se instaurou
uma discussão,
sobre o autor de
certa música.
A Palavra chegou,
finalmente.
Acompanhada de um
Violão.
Todos se animaram.
Vizinhos
se achegaram em
roupas de lã.
Lua, cantoria.
Alguém lembrou de
esclarecer
sobre o autor da
canção.
E a Palavra, já
puxando a melodia:
“É de domínio
público!”.
terça-feira, 26 de março de 2013
Dois relatos eróticos
Ensaio
(A
câmera dispara. E, na foto que bate sozinha, uma gota brilhante aparece entre
as pernas de Renata.)
Ela
era a cara do sol do Rio de Janeiro, diferente, claro, do sol de Curitiba ou
Aracaju. A pele já fora mais branca, os cabelos, mais castanhos. O bronzeado
era do dia-a-dia, realçado agora para a sessão de fotos; o alourado dos cabelos
vinha do excesso de sol mesmo, e combinava com os olhos claros, quase verdes. Rosto
esguio, aquilino, nasceu para sorrir, nasceu para brilhar.
Oito
pessoas na equipe, cinco homens e três mulheres, todos encantados com o astral
de Renata, a Menina do Rio. Ria sonoramente, nua. Sambava entre uma foto e
outra. Comia frutas. Se lambuzava de mel nos intervalos da sessão, naturalista.
Abria os braços e girava. Não, ela nunca tinha vestido uma roupa antes, nunca
tinha coberto os peitos duros, sustidos por elásticas fibras, nunca cobrira o
ventre esguio onde os pentelhos foram aparados não por alguma lâmina, mas por
uma brisa afiada. Tão à vontade, tão serelepe, tão linda que, que – é, ela
parecia não ter intimidade. Completamente exposta. Livre. Uma força da
natureza. Mas esse ângulo – o da intimidade – deixava a desejar nas fotos.
Ela
parecia já ser de todos, então era de ninguém. Parecia não ter nada a dizer,
nada a ouvir. Essa era sua defesa, seu casulo. O distanciamento era a entrega.
O desvendamento era sua concha.
Estavam
numa casa de montanha, enorme, toda aberta, florida, jardins, cores, vento.
O
fotógrafo e a produtora ainda não se preocupavam – quando mudasse de ambiente,
talvez um quarto, talvez uma suíte de hotel, aquela intimidade chegaria –
Renata era linda e o “receio” não tinha sentido.
Pausa.
Renata, em vez de se vestir, resolveu tomar uma chuveirada. Nua, à frente de
todos, agora sem as movimentações do trabalho, parece que ela realmente nunca
usou roupa.
Quinze
minutos de chuveiro, e ela deitou-se no colchão coberto de seda alocado num
suporte de madeira construído para o ensaio – sem maquiagem, sem nenhuma jóia,
nenhum acessório.
Deitou-se
em posição fetal, de lado, abraçando os joelhos, a bunda esguia voltada para as
pessoas que desmontavam luzes, mudavam coisas de lugar, recolhiam cabos e
rebatedores. Aquela bunda. Oferecida a todos. A vagina levemente entreaberta, o
ânus. O sol parecia se derramar no ambiente, enlouquecido.
E
Renata, sonolenta. Como se passara o dia inteiro na praia, um cansaço estafante
apenas de calor. Quieta, tão quieta que parecia dormir sem sonhos, embalada só
por silenciosas memórias. A intimidade. Como se fosse algo físico, que se
instalasse, não apenas nela, mas nos outros – invasão. Indiscrição. De tal
forma que, sem combinar, sem motivo aparente, a equipe começou a sair da casa –
todos. Ficou apenas Renata, deslumbrando a luminosidade.
O
que sonhava? O que lembrava? Se uma grande lágrima se formou em seu olho
esquerdo, e ela recolheu-a com a ponta do indicador e, sem perceber, levou a
mão até a vagina, onde a gota se incrustou, brilhante?
E
a luz disparou sozinha.
Estação
Mato
fechado. Noite fechada. Lídia não lembra como fora parar ali. Mosquitos.
Pequenos barulhos por todos os lados. Algo branco se move sobre as folhas. Parece
um bicho líquido. Não. Leite. Leite se movendo. Não se espalhando e escoando –
se movendo. Uma mancha branca de um metro de comprimento, meio de largura,
irregular, movendo-se para diante. Lídia segue a mancha. Contorna pequenos
troncos, pedras. Sobe um pequeno morro. No morro, o leite se espalha, se dilui
– e some, escoado na terra em torrões. Uivos. Do morrinho, Lídia vê mais
adiante, no alto: não um cão, ou um lobo. Uma pessoa. Mulher. Ela uiva? No
alto, sobranceira, a lua cheia. Lídia concentra-se. Não, não é a mulher que
uiva. É a lua. A lua uiva sobre a mulher, uiva para a mulher. E a mulher é
Lídia, com a cabeça erguida para o alto! Abaixa a cabeça, agacha-se, parece
enfiar as mãos na terra. O uivo da lua farfalha as folhas em volta. Lídia
acorda.
Demora
alguns segundos para saber onde está. Quarto em penumbra. O sítio de Clara.
Três semanas, fechando um projeto para conseguir uma bolsa de inglês no
exterior. E se curar do fim de um relacionamento amoroso.
Lídia
olha serenamente o quarto, os livros, e, pela janela, as árvores lá fora,
açaizeiros curvados ao vento forte. Começa a arrumar os pertences – mochila,
mala – livros, roupas, papeis, o laptop. Dois sapatos, sandálias. Deixa um
sapato de fora, com o qual viajará, e calça uma sandália, para sair.
Na
cozinha, um pequeno balaio de palha de palmeira.
No
quintal, vai colhendo uma, duas frutas de cada pé: limão; manga de vez;
carambola; cajá; caju; cajarana; seringuela.
Entra
na casa, as portas abertas, varadas pelo vento, amena claridade. Balaio sobre a
mesa. Não. Balaio no chão, entre as pernas abertas de Lídia. Sal. Água.
Ela
começa a comer. Manga, azedinha. Um chupão no limão, pouquinho de sal.
Carambola, linda, amarelo vivo. Lídia está muito descansada, parece que dormiu
doze horas seguidas após uma grande jornada. Lambe os dedos.
Acaricia-se
no banho, como se quisesse passar em todo o corpo a mistura de ácidos que lhe
ficou pelas mãos.
Uma
abelha pousa no sabonete.
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