segunda-feira, 25 de janeiro de 2010

LIVRO "BOM DIA - 61 NÃO-CRÔNICAS"

51 - Cantata

O coração é a região do cérebro em que cabe tudo o que não entendemos, ou evitamos, ou deixamos de lado. “Resolva com o coração”: resolva com a síntese profunda, que pondera com o que não entendemos, ou evitamos, ou deixamos para depois. Deixa as próprias forças do corpo, as próprias energias, gerarem uma decisão, deixa o coração levar. Por outra, nosso inconsciente é mais profundo que o consciente, e determinante, e o coração, como os sonhos, é uma manifestação – uma síntese - do nosso desconhecido: desconhecido que intuímos, que pressentimos, lemos, que nos sobressalta, mas que não definimos, não apalpamos, não esclarecemos: deixa o coração compreender.

Vou-me embora pra Candeias. Quando parti, a paisagem inteira se calou; o rio me seguiu como uma cigana jovem. Vou-me embora, e a criança há muito o rio levou. Vou-me embora pra Candeias.

Contemos histórias de chegar e de partir. Minha irmã, imaginativamente bela, inteligência rica em meandros, ainda adolescente sofreu uma calcificação no maxilar. Foi operar-se em Brasília, imersa numa esperança tenebrosamente realista. A despedida era como um barco a embarcar em si mesmo para naufragar no mar de si mesmo. Ao voltar a Belém, minha irmã sabia em todo o ser que jamais recuperaria a antiga face. Certa noite, o compositor e poeta Walter Freitas (que nunca toca por aí suas obras de inventor) cumpriu o prometido e desceu do táxi com um violão de seis e uma viola de dez cordas. E, por um tempão, tocou para aquela garota com a alma em frangalhos, aquela menina que se sentia um poço ao anoitecer e cada pequeno eco – do sol ou das estrelas - poderia sangrar, aquelas melodias complexas e imprevisíveis bombeando a rara imaginação das belezas deslinhadas.

No dia em que eu fui-me embora, minha mãe até o aeroporto. É o coração que tá me levando. No dia em que eu vim-me embora, morava um poema na gaveta do armário. Vou-me embora pra Candeias, minha mãe até as lágrimas.

A vida é uma esfera, como em “Cem anos de solidão”: até metade, a ascendência e o esplendor, depois a lenta corrosão como de tudo o que há. É certo, porém, que, ao atingir-se o topo da esfera central – o corpo – a esfera da vida segue a girar em várias direções, iniciando ciclos curtos ou longos – não sabemos -, a esfera é como o rio, nunca pára de girar e coincidir. Vou chutar a bola, reverter a parábola com outro lado do pé, vou atrás do sonho de fazer a bola girar sem que a enovelem qualquer malha de verbo. Vou-me embora pra Candeias, é coisa de coração.

O que eu fizer pode ser tão lindo quanto partir pra fazer. Vou embora de Belém para outro lugar de Belém. Vou embora agora que sei que todo caminho é sem volta, mas não passaremos jamais. Vou embora para silenciar como um lago parado, tocado nem pela brisa, lago em si mesmo. Vou embora para repousar como o urubu soprando a si mesmo acima do tempo. Vou embora como, pela manhã, um esquilo pára à porta da toca e fica olhando a chuva. Vou atrás em mim de uma sensação que ainda não sei que sou. Vou com o coração, que pressente antes que eu formule, que entende antes que eu fale. Vou para encontrar a palavra que enviou sinais como um sonho irradiado das junturas dos icebergs. É minha vez de ir, para Pasárgada, para o que nego, para o que encaro, para o que almejo, para o que enfrento, para o que determina minha vida sem, no entanto, estar formatado, explicado, compreendido: deixei o coração compreender. Vou-me embora até Candeias.

terça-feira, 19 de janeiro de 2010

LIVRO "BOM DIA - 61 NÃO-CRÔNICAS"


50 - Cenas de Buenos Aires

Os prédios dos bairros centrais de Buenos Aires são um pegado no outro, parede a parede, quarteirões e quarteirões de arquitetura com cara e charme de cinqüenta anos atrás. Quarteirões blocados, o vento gélido se canaliza nas ruas, num arrastão que lembra os gumes prolongados da cana-de-acúçar, só que invisíveis. Até o café ali na esquina, minha cara estará marcada como um capataz por canaviais do Século XVIII.

Os argentinos têm uma relação de amor e fúria com o cabelo – os jovens, os atletas, os engravatados, os apresentadores de televisão. Por vezes, pela rua, lembram lindos carneiros urbanos, a cabeleira loura assanhada em muitas direções ou cortada de formas estilizadas, os sérios senhores de sobretudo e pastas encabeleirados, as crianças, os adolescentes, e nas mulheres a cabeleira salta dos 27 para os 60 anos, na média-idade todos os fios sofreram interferência de cor e formato. Para tanta demanda, uma peluqueria a cada esquina.

Melhor não comer arroz em Buenos Aires.

A Galeria Pacífico poderia ser chamada de shopping, se o prédio não fosse – desculpe a frase – uma obra de arte, com afrescos nas abóbadas e uma arquitetura que transforma a construção, de material pesadão, numa espécie de fortaleza leve como a pluma. Comprar ali é se relacionar antes com formas criativas, várias exposições, instalações, o Centro Cultural Borges, Miró: gratuita, sem filas, a mostra de Miró reúne 63 desenhos e gravuras, em que se vê a manifestação do inconsciente, característica do surrealismo, depurada por um mestre não só de um movimento, mas da pintura: no artista espanhol, a forma não surge da linha, mas é a própria linha, e a pintura não se forma da cor, é a própria cor: uma mancha, uma gota. “A conquista da liberdade é a da simplicidade”, teorizou Miró. “O objetivo extremo é o quadro ser resolvido numa única linha.”

Faz uns dez graus, temperatura ideal para a feira de San Telmo, antiguidade e arte, uma das melhores pedidas de Buenos Aires. Deparamos os primeiros violões, pintores, cantores. A voz atravessa épocas e rincões, temperamentada a frio, noites inóspitas nos pampas, solidão que precisa ir até as estrelas. A música argentina toca tão fundo o sentimento da melancolia que, quando transcende, não se transforma na própria música – Bach – mas vira poesia. E não é só um instrumentista ou compositor: o povo, a cultura.

Na Argentina, os vendedores e garçons têm a aparência “bem cuidada” dos turistas. San Telmo é uma pausa cheia de harmonias: os portenhos se mostram orgulhosos do que são a turistas felizes em viagem, relaxados, a querer conhecer e respeitar o outro. Na pequena praça (o frio repousado nas peças antigas das dezenas de barracas) o casal se prepara para dançar: o “Tango Índio”. Incrível: a dançarina tira a calça jeans à vista de todos (é como ver uma aeromoça de toalhas): já traz, para o ofício, meias pretas sob o colant decotado, de sensualidade agressiva, plena do que se seguiria. Ela então põe sobre o colant a saia preta, o sapato de saltos altíssimos e firmes e começa a se aquecer, ainda sentada a testar os sapatos: e o tango salta-lhe por dentro do corpo, desperta não como uma brisa inicia a tempestade, mas já aos arrancos, pequenos choques impetuosos em braços e pernas que desafiam a vontade como se tivessem vida própria, apenas usam o corpo da dançarina como “cavalo”.

Duas garotas índias aparecem – uma de uns seis, a irmã de uns nove anos – com pequenos bandoneons à tiracolo. Aproximam-se da dançarina, recebem carinhos, riem estupendamente, como duas brasileirinhas. Antes do show, umas palavras sobre o “Tango Índio”. O dançarino, alto, mais encorpado pelas botas longas, fala das diferentes levadas e formas de tango, e demonstra com palmas e nos pés, e vai ao aparelho de som, e mais uma vez demonstra as diferenças, na instrumentação, e apresenta as roupas típicas do meio em que a dança começou, mantas, pantalonas, e mostra o punhal tão argentino, “usado para trabalhar ou defender-se”. Fala rápido e com carisma, pede uma salva de palmas irônica para as pequenas irmãs índias, “grandes artistas”, que três vezes o interromperam com risadas. A dança vai começar.

Ambos se movimentam de longe, como se fosse inevitável tanto a atração quanto o afastamento: o tango é a dança da tentativa de dominação entre os amantes. Os corpos se encontram, em choques, e, em vez de um conduzir o outro, se enfrentam, se desafiam, e se insinuam e roçam, mas, sempre que um parece enfim vencer, o outro sai-se, reverte-se, para logo lançar-se no jogo de fogo em que a suavidade se derrete para forjar um punhal.

E, como no poema de João Cabral sobre a dançarina espanhola, veja, a mulher do tango é a égua e o cavaleiro, às vezes não sabe se monta ou é montada, mas no tango a companheira tem um partner, que, literalmente, tenta apoderar-se da fêmea passando-lhe a perna pelas costas como por sobre uma sela (se a perna passar completa, a alazã estará perdida) e, quando parece que a perna transporá a linha da fatal dominação, a mulher escapa, mas não como se fugisse, escapa com um movimento de perna que parece o desmontar de um cavalo: o cavaleiro estava prestes a dominar a égua, mas ela é que desmonta.

segunda-feira, 11 de janeiro de 2010

LIVRO "BOM DIA - 61 NÃO-CRÔNICAS"


49 - Famosas sem calcinhas

Há quem creia que já são efeitos do fim do mundo, cada vez mais urgente; de qualquer forma, dá o que falar essa moda de as famosas irem sem calcinhas às festas.

Elas saem na maior de dentro das limusines, e, “distraídas”, são flagradas mais nuas que quando vieram ao mundo e em detalhes às vezes constrangedores. Minutos depois, as fotos estão na internet. Há disponível uma seqüência que deve fazer o inferno da cantora Britney Spears: não porque aparece em pêlo, e sim por detalhes deveras sutis que devem ter traumatizado alguns fãs adolescentes.

O mercado de lingeries caiu dois pontos na bolsa quando Paris Hilton parou de usar as calcinhas que mostrava a torto e a direito. Pra você ver: o sobrenome Hilton é sinônimo de riqueza, luxo, tradição. A herdeira da cadeia de hotéis não podia ter outro nome: Paris. E não podíamos ter sorte melhor se, para Paris Hilton, mostrar a perseguida é o de somenos: nossa seriema de vison tem vídeo na internet em que faz de tudo com o namorado.

No Brasil, Juliana Paes revelou detalhes que até hoje atormentam os crédulos - em visadas festas de famosos.

Há uma seita de hereges que faz vodu pela internet para que, ao menos por alguns minutos, a Sandy se comporte em público como a Preta Gil.

(Eu prefiro esperar o resguardo da Carolina Dieckman.)

Não vão muitas décadas, artista era tão marginalizado que “atriz era tudo puta”, rememora Dercy Gonçalves; hoje, quase todas as estrelas da novela das oito posaram nuas; as jovens atrizes encenam ensaios sensuais em sites chiques, como Paparazzo; sexo na tv é só esperar cinco minutos. Para a maioria dos telespectadores, mostrar por aí o desenho geométrico da depilação não vai bem em moça de família. Mas as artistas estão a salvo, artistas são imaculadas como antes eram manchadas, gente como a gente, cheia de telhado de vidro, e você vai atirar a primeira pedra?

As mulheres definitivamente nos puseram na bolsa: posar para a G Magazine acabaria com a carreira de Denzel Washington, mas Daniela Cicarelli cresceu no conceito até dos ET’s após o vídeo em que transa na praia. A própria Dercy ainda saboreia vingança consagradora: mostra os peitos a torto e a direito desde os 90 anos. (Muito pracinha vai para o beleléu.) Valei-nos, São Marquês de Sade.

O diabo é que não dá pra prever onde essas maravilhas vão dar. Lembro de um comercial de Coca-Cola em que a adolescente – 13, 14 anos? – coleciona uma lata para cada vez em que “ficou” com alguém: havia centenas de latinhas no quarto. Com tanto estímulo, a questão sexual nas escolas é assunto para a saúde pública (sem falar na gravidez na pré-adolescência). Há casos de crianças de seis anos que produziram leite. Quando tinha meses de nascida, minha filha via tanto beijo na tv que sua brincadeira predileta era beijar na boca um boneco esquisitíssimo chamado Michel (hoje ela tem um ano e meio e trocou o Michel por um sapo duas vezes mais estranho).

Nossas estrelas se libertarem das calcinhas, no verão tropical, contra o calor dos países baixos, que maravilha, considero uma alta conquista do humano, afinal não pode ser pecado o gesto mais “natural da natureza”: aquele que garante a reprodução da espécie. Mas há que se ter responsabilidade, porque, de acordo com o ângulo, isso pode ser vulgar de dar dor e os filhos alheios não têm por que compartilhar exemplos tão cabeludos. (Lembro do comercial de um filme da Xuxa, no qual uma criança elogiava a “obra” e convidava a turma para assistir porque aparecia, “só de sunguinha”, o Xandy, marido da Carla Perez.)

Repensando bem, depois dessa do Xandy, começo a crer: evém o Juízo Final.

quarta-feira, 6 de janeiro de 2010

LIVRO "BOM DIA - 61 NÃO-CRÔNICAS"


48 - Bares e aparelhagens

Com paixão – não interessa qual – é inútil discutir. O apaixonado até acha que pensa, que toma decisões, mas apenas age, obedece, obcecado pelo objeto de loucura. Depois da morenês índia, da culinária e do futebol, o que mais endoida o paraense é a música.

Imagine um garoto de doze anos que descobre a vocação: lidar com sons, animar festas, fazer dançar. Observe-o numa rotina em que ouve música pelo menos 16 horas por dia – tudo é com música - comer, estudar, ir ao banheiro. Qualquer grana que role, discos, discos, discos e equipamentos. Some este garoto com milhares de outros. E, décadas depois, terá algumas das maiores massas de som do planeta, as aparelhagens do tipo treme-terra, tupinambamente paraenses, arrasas-quarteirão da Amazônia – com a poluição sonora correspondente.

Todo povo tem no mínimo um Deus, uma língua, um álcool; de cana, de arroz, de malte, de cevada com lúpulo (como resistir a “lúpulo”?); o álcool é a droga da humanidade, aceita socialmente, pessoas sérias bicando um uisquinho, até o presidente Lula bebia em público – identificando-se com o povo, fazendo uma média, mas o marketing virou contra o marqueteiro Duda Mendonça. O Brasil é emocionalmente uma bagunça - há cenas de sexo à tarde na tv; no horário de verão, os programas são passados, por exemplo, em Belém uma hora antes que no Rio de Janeiro; beber na frente dos filhos é hábito da família nacional.

As religiões e o “humanismo” passaram milhares de anos a nos ajudar a controlar o instinto sexual; e a publicidade – o sexo como mote e a liberação feminina com a naturaleza – detonou tudo em menos de vinte anos. Hoje é sexo e sexo, as crianças junto, sem proteção, sem diálogo, por isso adolescem sem a menor maturidade emocional. O sistema criou situações degradantes, humilhações, monstros como o da violência, e não consegue controlá-los, e em vez de resolver pela causa, rende-se ao Godzila do processo que se perpetua deglutido os irmãos.

Salvam o cidadão as manifestações do prazer - carnaval, boi-bumbá, forró; coisas do povo para o povo, que às vezes dependem do poder constituído, e de repente o poder não apóia mais samba no carnaval; e depois de criar o Alien do álcool (a conta publicitária das cervejarias rivaliza com a do governo federal), depois de nos seduzir com nosso próprio destilado (de cana) e, sobretudo, depois que nos acostumamos com essa dragagem, digo, com esse dragão, depois que nos envolvemos, que virou estilo de vida, eis que o poder decreta que não se pode mais, depois da meia-noite, ir ao bar da esquina com nosso monstrinho de coleira.

Na verdade, muitos podem sair, sim, de casa, e beber até de manhã, desde que em locais específicos, que atendam a uma série de exigências. A verificar-se quem os freqüenta, se constatará o óbvio – que os de maior poder aquisitivo preservarão intacto o lazer, enquanto os mortais serão atingidos na rotina: porque o poder público não encontrou outra forma de enfrentar um problema social.

De início, discutia-se apenas como reduzir (com urgência) os índices de barulho na cidade (a mais barulhenta, por cultura, do Brasil); em seguida, concluiu-se que fechar os bares reduziria também os índices de violência; e não se teve dúvida. (Em que veio dar a paixão de nosso menino apaixonado por sons, e logo agora que a música do Pará nunca fez tanto sucesso, nunca vendeu tanto, pois justo hoje decidiram silenciar a cidade: e não se pode celebrar, de ouvido, tal feito num bar, onde a maioria dos músicos se formou.) É certo que Belém já investiu (e precisa investir) muito em turismo para abrir mão de uma “noite” acalorada; mas tô preocupado mesmo é com a temperatura de nossas íntimas baixadas.