segunda-feira, 24 de agosto de 2009

LIVRO "BOM DIA - 61 NÃO-CRÔNICAS"


34 - Parábola em Pã menor

Emiliano nasceu ouvindo música, e cresceu entre as flautas das cordilheiras. Ainda pequenino, entrou em transe num ritual ao ar livre, e descreveu cenas de séculos antes. Em outra cerimônia – em que celebrava oito anos - Emílio desapareceu, e logo ecoou a voz suave e arrebatadora. Do alto de um rochedo, o menino parecia soprar a canção diretamente nos parentes e amigos, e jamais haverá voz igual; tão linda que todos narrariam, exultados, como os timbres se transformavam ao vento e, para quem ouvia de baixo, soavam nitidamente como flautas de Pã.

Emiliano tornou-se músico e compositor, e aos nove anos conquistou os primeiros turistas, já nas ruas da cidade do México. E viu, com interesse e fascinação, como se fosse a primeira vez, o próprio rosto num espelho.

Passou meses olhando-se, isolava-se e fitava-se interminavelmente, numa melodia às vezes clara como a água, ou dura como o granizo. Anos depois, o susto, o horror: Emílio vomitou num bar, foi ao banheiro recompor-se, e a face não aparecia (ou aparecia embaçada) no espelho: ele enregelou-se como nos primeiros transes, voltou num impulso para junto dos amigos, não podia ser!, três minutos depois retornou ao banheiro e não havia dúvida – refletiam-se os avisos, a mulher nua no papel, dois jovens que entraram rindo, menos o rosto apavorado, que, para onde se movesse, sumia ou produzia um reflexo embaçado.

Emiliano passou aquela noite assustado, só podia ser alucinação, talvez álcool reagindo com as ervas em que participava, desde criança.

Acabou atormentado - seis meses de absurdas especulações - até Emílio enfrentar de novo a própria imagem num espelho - e recuperar o rosto abatido, olhos em fogo, respiração fora de lugar.

Emiliano então retornou aos Andes, e foi recebido como o mais amado dos seres.

Pediram-lhe para cantar no casamento de um primo - ele ainda tentou explicar que não cantava há meses. Foi silenciosa a mágoa da cidade, e Emílio mudou de idéia, horas antes da cerimônia: e soltou a voz acompanhado da pequena orquestra; só então soube que os músicos ensaiaram por nove anos, até acompanhá-lo.

Naquele dia, Emiliano descobrira que a música é que induzia aos transes; os sentimentos e visões eram produzidos pelas notas, liberando e ordenando o inconsciente, acessando quadros incas de séculos variados.

Semanas depois, Emílio compunha entre as árvores, e formou-se nele uma melodia tão alegre e suave que viu a esposa, bêbada, entre jovens eufóricos. Esposa que ele ainda não conhecia.


Emílio perdeu-se no mundo, cantando e vendendo artesanato em bares e comunidades. Na esperança de conhecer a visão.

Temporada na Amazônia, peregrinação por dezenas de países, percorridos a esmo; retornando sempre aos Andes, “onde o vento ficaria1se soubesse morar”.

Conservara o medo aos espelhos, e raramente fitava-se.

Já usara centenas de meios de transporte.

Uma vez, tocou “Asa Branca” com um grupo de peruanos, no Anhangabaú, São Paulo; dezenas choraram na platéia, a garoa fundindo o Nordeste com os Andes.

Emiliano conheceu muitas esposas, reveladas pela noite de tantas fronteiras; mas nem sinal da que o espera num bar.

Haverá mesmo essa noiva, ou tudo é ilusão? Existirá essa que ele ama através do tempo, a despeito de ser metropolitana? (Ela sairá da tv para o computador, e traçada em néon se aproximará rindo do espelho, sem medo de que o rosto poderá não aparecer...) Ou seria ela uma visão não do futuro, mas também do passado?

Emiliano já se perguntou mil vezes, e mil vezes acreditou que essa namorada, morena e bêbada, é, sim, tão real quanto a água; e um dia, após ouvir a história do músico forasteiro, ela até pensará se tudo não é mito, enquanto ele terá certeza da própria memória; e confiará que a realidade existe, e é Emiliano Montoya, nascido há trinta anos numa choupana andina, e não numa esplendorosa capital inca, há séculos soterrada. E finalmente não temerá nem o espelho, nem a flauta.

segunda-feira, 17 de agosto de 2009

LIVRO "BOM DIA - 61 NÃO-CRÔNICAS"


33 - Drácula

Vampiro com dor-de-corno é o motivo maior de chacota entre imortais. Felício nunca se sentira tão humilhado, até limpavam os caninos à sua passagem, e de fato caíra com unhas e dentes diante de Roxana. Para piorar, a história parecia um dramalhão de época: Felício apaixonado por Roxana e a bela dividida entre ele, imortal, e um reles humano: entre um drácula de linhagem inextinguível e aquele sujeitinho passageiro e inconseqüente, poeta de terceira, humano e meloso, mas que diabo - nem quando sugou o melhor do Século Dezenove Felício tolerou o romantismo.

“Palavras! Palavras! Palavras!”, o vampiro não cansava de repetir. “Palavras! Palavras!”. Dor-de-corno é pior que ressaca de rum e pesa mais que a luz da manhã. Felício certa noite quase se ajoelhou aos pés de Roxana, parafraseando o conquistador Vinícius de Morais: “Com aquele poetinha, será o eterno enquanto dure; comigo, será de fato eterno”; mas Roxana, atriz de dezenove anos, estava disposta a representar o drama da morte. Felício apelava: “Se de fato não tens medo, escolhe um tormento de verdade: a minha morte imortal, que precisa fugir, a cada dia, do sol, e, a cada noite, das estrelas”. Mas ela seguia a esnobar. “Palavras! Palavras!”, Felício estava mesmo bronqueado, que palavras teria usado o outro para cegar Roxana?

Felício não poderia simplesmente surpreendê-la e morder-lhe o pescoço, ou Roxana o odiaria pela eternidade. Não poderia transformar o tal poeta em vampiro, ou o aturaria para sempre. E de fato não poderia tornar-se humano, nem que quisesse, “ou eu o faria imediatamente”.

Quanto mais inseguro se sentia Felício, mais Roxana lhe contrapunha argumentos, dizia não, detectava diferenças; parecia que se afastava irreversivelmente, e Felício encolhia-se como um pintinho na chuva.

Pra encurtar o conto, chegou o dia fatal (em que seria conhecido o eleito) e precipitou-se o lado trágico do cômico: Roxana escolheu ele, Felício – “ficaremos juntos para sempre”. Namoraram por horas até ele morder-lhe o pescoço, aproveitando a deixa da aurora; e separaram-se – Felício teve que fugir do sol. Na noite seguinte, reencontrou-a linda, de chapéu no jardim, cantando baladas a esmo; duas horas depois, enjoara-a. Na terceira noite, ele estava tão exasperado que disse a Roxana que já não suportava a situação. Ela descontrolou-se e revoltou-se e ameaçou-se a ponto de Felício revelar que havia uma alternativa desesperadora. Roxana ainda não era 100% vampiro. Podia morrer. Ela matou-se no tempo-limite, duas horas depois. Transtornado e aos prantos, Felício transformou em vampiro o poeta de terceira (para que sofresse também, eternamente, aquela morte) e não é que o infeliz notabilizou-se como o melhor drácula cantor e compositor de boleros?

segunda-feira, 10 de agosto de 2009

LIVRO "BOM DIA - 61 NÃO-CRÔNICAS"


32 - A primeira namorada

Quando Carlinhos tinha treze anos, tentou com dois amigos assaltar um senhor em Copacabana. O homem reagiu com chutes, foi ferido na mão, e, num carrinho próximo, pegou o furador de cocos. Enterrou-o no olho esquerdo de Carlinhos.

Um mês depois, o menino teve alta do hospital. O glóbulo fora extraído e, em casa, o ferimento não recebeu maiores cuidados. A cicatrização repuxou para dentro a região atingida, criando um pequeno buraco em nódulos, como um umbigo.

O tempo passou mastigado, como se o adolescente e depois o jovem contasse cada segundo. Carlinhos completa vinte e um anos, jamais esquecerá a dor quando o olho foi atravessado. Tão aguda que ele sentiu que morreria de dor. Tudo então turvou-se, e pensou na mãe.

Sempre que Carlinhos está triste, ou sofre algum baque, a dor retorna com laceração. E nela o jovem descarrega o ódio. De tal forma que às vezes não sabe se o que dói é o olho, e a má-cicatrização perto do cérebro; ou se revive a dor para sentir-se mais forte diante das dificuldades. Convive com a dor o tempo inteiro.

Carlinhos nunca teve namorada. Trabalha como carregador num supermercado. Já brigou por terem zombado de seu olho, e bateu numa prostituta que tocou na cicatriz.

Juliana vende água de coco. Na praia, perto do supermercado em que Carlos trabalha. Fitam-se todo dia, ao longe, ela com o furador de coco na mão.

Domingo, Carlos tem que fazer um trabalho extra, chega às seis da manhã. Dobra na rua do carrinho de coco: só pelo hábito, é cedo demais. Mas lá está Juliana!

Carlos aproxima-se pela primeira vez, evita olhá-la de frente, ela ri: pega o furador, faz a água espirrar, e entrega-lhe o coco.

Ele aceita, ri sem graça, ela olha-o com doçura.

Dizem-se os nomes, constrangidos, mas as frases não se liberam. Juliana, então, súbita, toma-o pelo braço e andam até o mar.

Sentam-se, de frente para o dia nascendo.

O barulho das ondas, o cheiro.

Ambos estão tranqüilos e surpresos, ela por entregar-se a um impulso, Carlos porque permite ser olhado de frente.

Dão-se as mãos negras, andam ao longo da orla.

Marcam encontro para o amanhecer seguinte.

No terceiro dia, beijam-se.

Duas semanas depois, ela beija-o em todo o rosto, e no olho ferido; beijinhos rápidos, cheiros, risinhos. Olha-o, e toca-o brincando na cicatriz, e ele ri e ri.

Pela primeira vez, Carlos não sente a dor do olho, o cérebro desanuviado como por magia.

No encontro seguinte, à tarde, ele usa pela primeira vez óculos escuros.

segunda-feira, 3 de agosto de 2009

LIVRO "BOM DIA - 61 NÃO-CRÔNICAS"


31 - Na galera

Em golpes de imaginação.

Esse início poderia ser a palavra de Deus sobre as águas, ou golfinhos ensinando aos homens o passe-chafariz, ou “O encontro do Homem com o seu Primeiro Eu”, ou o futebol como o esporte do terceiro milênio, ou de como o futebol nasce não do barro, mas da terra, o início seria bem o rio ou o mar que todos guardamos da infância, os primeiros brinquedos, as visões que marcaram os olhinhos para sempre. Sim, a infância. Então o inicio tem que ser que para cada criança há uma história após a outra, que cada criança eleva o quociente de imaginação da humanidade, que um besouro pode ser o mundo e o mundo pode ser um besouro, e que para cada história encantada minha tinha uma palavra especial. Sim, aquele sentimento: os primeiros contadores de histórias, os primeiros livros. As capas coloridas. A imaginação em golpadas.

Assim pastoreada pela magia – ao amanhecer – acompanhemos essa bola rio acima. A semi-escuridão que emana da mata envolve-a; o sol que desponta auréola-a. Às vezes mergulhando no rio, às vezes suspensa em halo, a bola agora é uma canoa e leva nos gomos ritmo de maré e pato no tucupi; danças de ventres sinuosos e um milhão no Círio; transporta uma raiz revolvida e o começo da água. Assim tangida, de canoa a bola vira boi-bumbá, passe a curta-distânca do Pará ao Maranhão. Aí a bola enfia as mãos por milhares de seixos de babaçu – como noutros lugares escorrem entre os dedos grãos de feijão ou cachos de trigo – e, em Goiás, o sotaque límpido do Maranhão aprende a cortar os “nn”.

Em minas a bola fica séria, melancolia que mira longe tramada pelas montanhas. (Nela Drummond é um ser em contemplação, extático, e Milton deixa a voz aos diamantes.)

Fronteira dos pampas: para o frio, mantas e chimarrão; milongas à solidão.

Em São Paulo, a bola passa um dia andando de ônibus e metrô e uma noite perambulando entre bares e tribos. Só então quebra vidraças na Paulista.

Após visitar o Maracanã, a bola cai de boca no Rio.

Na Bahia é o corpo pra lá, o corpo pra cá, o corpo pracolá...

Varando o Nordeste, a bola é sal ao sol (o rosto dos homens se representa com motivos regionais de terra gretada).

Até que no Ceará a bola relaxa – agora jangada tangida pelo vento – e as bordadeiras presenteiam-lhe com a claridade tropical. Bordado de Brasil, a bola vira tapete e pousa na França em vôo de Aladim. Recolhe-se por toda a Paris em três dias de meditação. E só então se mistura aos países da Copa.

Conhece o admirável homem novo das neves, o homem da montanha, latinos em sedução fumegante. Vai à África em tabelinha com a Ásia. Faz amigos em todos os países da Terra. Recolhe assinaturas de variadíssimos talentos.

Quando volta à galera (este lugar de onde vejo o jogo) a bola contém a forma do globo terrestre: imagino que nela se encontram todas as culturas, todos os meninos e domingos: todo o conhecimento – mas purificado pela paixão. Sinto que a bola é um sonho: os homens, todos os homens, pertencem à mesma família – ligados pelo ramo do Futebol – e se compreendem, se respeitam as diferenças. O Eu confia no outro. A chave do emocional.

É nesse reino mágico em que ingresso – sonho sem diferença entre criança e torcedor - que os artilheiros contam histórias de aventuras. A galera ouve de boca aberta, o coração aos pulos, olhos brilhantes-arregalados. Então o artilheiro anuncia que são iguais os direitos das crianças e adolescentes e os dos torcedores, e adota – de volta ao início, fechando nossa circunferência – por princípio um parágrafo único: toda criança e todo torcedor têm direito ao livre desempenho de sua paixão e de sua imaginação.

Estar na galera, a-final, é aviar histórias.