segunda-feira, 29 de dezembro de 2008

LIVRO "BOM DIA - 61 NÃO-CRÔNICAS"


1 - Amor, paixão, Ponto G e o é da coisa

Perdoa, leitora, mas é como se descansasses a cabeça sobre a crônica: que descarregues nestas frases o ano de amanhã, o cotidiano, a segunda-feira, que feches os olhos e ouças o rio Itacaiúnas, centenas de quilômetros distante. Está claro que paixão e amor são de gêneros diferentes, atesta-o conceitos como “Paixão sem amor”, “Sexo sem amor”; repiso que paixão é física, biológica (cadê o cio do primata homem?), já o amor é cultural, “humano”. Paixão é anterior ao nascimento e determina-o; amor é uma posterior soma de bons afetos: confiança, amizade, companheirismo. O mel do melhor é quando tocam-se em profusão, pois o Ponto G não fica no corpo, mas no tempo, não está na pele da amada, mas na intensidade e na duração do encontro. O ponto G é a paixão - com a confiança para a entrega, a amizade intrínseca dos corpos, a união para a revoada dos sentidos. Cumplicidade, fraternidade, piedade – sim, se ali escancaramos o Eu, se ali expomos todas as fraquezas com que a vida nos cumula; “Eu te amo!”, dizem as apaixonadas, ”Eu te amo!”, e têm razão, pois que seria incompleto dizer ”Eu estou apaixonada, estou apaixonada, apaixonada!”.

Sei, leitora: mais do que nós, atravessarás dos corpos o escuro e a curiosidade, porém teu primeiro salto, que cuidadoso! (Repousar a cabeça e mirar para dentro, ouvir baixinho certa música, deixa a brisa despertar a manhã, deixa os olhos se encherem de mar, açaizeiros para a chuva de Belém. O corpo é uma canoa à flor do corpo, tantas braçadas até os confins da água, aí as plantas dizem “Eu te amo!”, e paramos no remanso e lhes repousamos as cabeças nas touceiras; e lhes mordemos os talos, ritual de milhões de anos.)

O peruano César Vallejo alerta num poema: mede bem o tamanho de tua alegria: se ela de fato cabe em tua extensão. Quanta paixão caberá em todo o império dos sentidos? E como sobreviver a ela? Eu preciso do amor para voltar, preciso do amor para me perdoar, restaurar-me no retrato meu de Dorian Gray: preciso do amor para seguir em frente, e abandonar e retornar e partir, e exercer-me e ser perdoado, e me inundar do que não conheço, e submeter à poeira e à pureza.

A paixão, bem sei, carbura a si de uma só combustão, como se o fôlego do corpo não sustentasse a corrente. Lamento a transitoriedade não da vida, mas desse toque de Vênus, o ponto G, que dura um raio, choro a fulguração não do pensamento, mas de química magia, tão feroz é a vontade de se consumir no mistério (e há sonorosas ocorrências em que o tal pontinho H dura anos). Preciso do amor para ir atrás da paixão, para que ela volte e os meses excedam a própria cota, para que parta e revolva como um filho, o filho pródigo do amor; e preciso da paixão para que meu amor volte sobre si mesmo e se unifique, temperado por madrugadas bêbadas, por flamas estilhaçadas, olhos famintos flagrando, de uma vez só, as bocas de todos os casais.

Quem disse que são de naturezas diferentes o amor e a paixão, quem disse que um é químico, outro, cultural - se enlaçados nunca os distingo, se o destino lhes foi atiçado num barro vulcânico, do qual brotam, diretamente no ar, duas borboletas, e voam sempre para o alto, para o alto, para se esconder do sol entre as estrelas, como separá-los, se amor e paixão transfundem-se desde o gesto em que, juntos, descobriram a voz, e repetiram “Eu te amo! Eu te amo!”; após tanto ir e voltar, não se separarão jamais, amorpaixão, como aquela palavra que, ao pescar o que não é palavra (o é da coisa) amalgama-se a ele – aqui o é da coisa é um Ponto G que esgarça e costura o tecido do tempo, enquanto o Ponto G, assim no é da coisa, nem precisa de corpo: depura-se num retalho inviolável - eterno - de nosso humano jardim.