quinta-feira, 1 de março de 2007

Outros poemas (do livro "Do real imaginado")

interior

o rio corre em teu rosto
onde inda raia o sol posto

o rio dorme em tua face
e cada estrela que nasce

banha-se a lua na rede
te acordo: tenho sede


À Paula Macário



Quase gravura

Na selva de hemácias e água,
o dicionário artesiano
abre-se sozinho,
após o tempo’ral;
o sol, aos pingos,
desabotoa-se
sobre casulos-de-verbo.
À pedra – à sua medida vulcânica -
se não retempera a chama borbulhante:
gema - de magma extinto,
clara - de carvão.
A pedra, condenada a estar-se:
ainda que lhe prorrompa a água
no alto da serra.

Reverdecer a própria lava.

Onde o sol não se assola,
onde não se greta o rio,
nem o vento sopra ferrugens
nas lanugens,

um diamante forma-se: de tempo.

Dois relatos


No limite

Nina anda arriscando tudo no sexo com Zeca; da última vez, sassaricou numa festa e durante a transa negaceou, insinuou, negou mas deixou no ar os amantes que ele inventava; “Você se surpreenderia se soubesse de um!”, disse certeira, e Zeca dominou-a com tal ímpeto que Nina escangotou-se em gemidos.

Ela tem vinte e dois anos, o namorado, vinte e sete. Às vezes Nina bebe demais, chora por mil coisas, transa como louca. Ele treina jiu-jitsu pra atender ao instinto violento.

Chegam de moto ao sítio de um amigo, festa de alta voltagem, vodca geladinha que atraiçoa.


Música; dança; gargalhadas.

No auge da bebedeira, Nina descreve os vários tamanhos de pênis, e as vantagens e desvantagens de cada um. Zeca puxa-a pelo braço e ela ainda berra “Mas nada se compara com uma transa a quatro!”.

Ele empurra-a para longe da casa, Nina agora não emite um som, Zeca não esquece as descrições.
Quando os gritos não seriam ouvidos, sacode-a pelos cabelos, e ela caçoa do “peru” dele.

Zeca vai assassiná-la, precisa controlar-se, mas não consegue; “Eu vou te matar! Eu vou te matar!”, sujeita-a com uma violência que a choca, obriga-a, ela cavalga-o, Zeca arria a chibata da mão, minutos depois Nina é que grita e geme, e passa a arranhar, morder, beijar, com extrema violência e amor. Surpreso e grato, ele observa-a gozar como numa cura, e quanto mais Nina urra, mais Zeca se deixa espancar.

Ela chora em silêncio à beira do rio.

O novo dia é o de maior paz em suas vidas, e Nina está mais exausta do que o marido.


Breve história sem tempo

Chama-se Tomiko, e se acerca do mar duas vezes por dia. Nós, que conhecemos sua história, já não fazemos perguntas.

Há trinta anos, Tomiko foi para Tóquio, e o namorado, Solano, ficou no Rio de Janeiro.

Muito padeceram a ausência temporária, aliviada por cartas, telefonemas. Unidos pela mesma paixão e solidão.

Aceitavam a distância em nome do futuro, mas uma noite Tomiko assustou-se na cama. Deu-se conta de que eram isolados não pelo espaço, e sim pelo horário. Um dormia ou se divertia enquanto o outro trabalhava. Ânimos sempre diferentes, estados de espírito desencontrados. O espaço separa, o tempo os afastava.

Logo tudo dividiu-se entre dia e noite, e Tomiko encheu-se de temor.
Combinaram, então, lembrar coisas um do outro nas horas que não são claras nem escuras. Nem no Japão, nem no Brasil.

Ao amanhecer, ele via o sol nascente; ela, o mesmo sol se pondo no mar. E o inverso. Anoitecer e amanhecer tinham as mesmas cores, pensamentos, evocações. E duas vezes por dia, às seis horas, Tomiko e Solano se lembravam coisas boas, até telefonavam, no início.

O tempo dissipou muitos sonhos, menos aquele estado produzido pela imaginação. Lembrar um do outro, nos minutos combinados, passou a ser mais real que as paisagens. Mesmo quando esqueciam de lembrar.

Às vezes, só horas depois recuperavam o pensamento perdido. E até só na manhã seguinte.

O estado de carência e paixão, no entanto, aquele sentimento uno, existia em si mesmo; dentro e fora deles, intacto, sempre que era ocaso e aurora. E os uniu até depois que se casaram, e passaram a fitar o mesmo dia e a mesma noite.

Solano celebrou “meio século”, fez tudo por uma semana com os filhos, parece que pressentiu o infarto.

Desde então, quando amanhece e anoitece, vemos Tomiko ao mar, falando com o marido morto. Para ela, nestes momentos, não é nem dia nem noite, nem vida nem morte. Apenas, mágico e real, aquele mesmo sentimento perfeito, o mesmo estado da imaginação a reuni-los.